Você
provavelmente já ouviu falar alguma coisa a respeito de pessoas que nascem com
os órgãos reprodutores dos dois gêneros. Antigamente, eram chamadas de
“hermafroditas”, mas o termo correto é “intersexual”. Pesquisas recentes
apontam que uma em cada 100 crianças nos EUA nascem com essa característica.
E aí começa a
polêmica, afinal em 2012 foram realizadas 2.991 cirurgias reparadoras em
pessoas com menos de 18 anos; e 1.759 em crianças com menos de cinco anos de
idade. A discussão, no caso, envolve também questões de identidade de gênero –
como uma equipe médica decide qual estrutura anatômica deve ser retirada?
Em crianças com
menos de cinco anos, essa questão da identidade de gênero ainda não é definida,
obviamente. E se o procedimento cirúrgico envolvesse a retirada do órgão sexual
masculino, por exemplo, e, no futuro, essa criança se identifique justamente
com o gênero masculino? Querendo ou não, há 50% de chances de que isso
aconteça.
Não é apenas uma
hipótese
Foi isso o que
aconteceu com um garoto que conhecemos apenas pelas iniciais do seu nome: M.C.
Ele foi adotado quando tinha 1 ano e meio de idade. Dois meses antes da adoção,
no entanto, o garoto, que tinha nascido com pênis, testículo, ovário e canal
vaginal, havia sido submetido a uma cirurgia que removeu todos os traços da sua
anatomia masculina, ainda que exames de sangue indicassem que M.C. tinha os
mesmos níveis de testosterona de qualquer menino de sua idade.
Hoje, aos dez
anos, M.C. não tem pênis nem testículos, embora se identifique com o gênero
masculino – e por isso será tratado como “ele” nesse texto. Atualmente, os pais
do garoto movem uma ação judicial contra a equipe médica que, segundo eles,
teriam escolhido o gênero da criança sem o direito de fazer isso.
Bebês
intersexuais devem ser passar por esse tipo de cirurgia?
Esses
procedimentos de “correção” são realizados há décadas, com a intenção de que os
bebês que nascem intersexuais possam ter uma vida normal. A questão é que
identidade de gênero é um assunto que vem sendo cada vez mais debatido,
felizmente.
Pessoas transexuais
às vezes passam por cirurgias e tratamentos hormonais para conseguirem fazer
parte do gênero com o qual se identificam, e não há nada de errado com isso.
Por serem uma minoria, e por empatia ser um exercício ainda pouco praticado, é
difícil que pessoas cisgênero (aquela que se identifica com o gênero com o qual
nasceu) entendam ou tentem entender como deve ser não ter essa identificação.
Ainda que muitas
pessoas não entendam o que é essa questão de identidade de gênero – dica: se é
difícil entender, respeitar é o mínimo – o assunto está começando a ser
amplamente debatido, ainda mais com o apoio de transgêneros famosos como Caitlyn Jenner e Laverne Cox.
No Brasil,
podemos citar o exemplo de Maria Clara Araújo, que vem ganhando cada vez mais espaço nas
redes sociais, principalmente depois de ter sido aprovada no curso de Pedagogia
da Universidade Federal de Pernambuco. Nosso mega parabéns para ela!
No caso de
pessoas intersexuais, o problema está na questão de que em pessoas que passam
pela cirurgia muito precocemente, o possível estigma que o procedimento visa
evitar pode ocorrer de maneira muito pior mais tarde, como é o caso de M.C
O
caso de Money
Depois de um
experimento extremamente controverso, realizado com a ajuda do psicólogo John
Money, que na década de 1950 começou a estudar identidade de gênero, a
problematização da cirurgia realizada em bebês passou a ser cada vez mais
debatida.
Basicamente
um dos experimentos de Money consistiu em acompanhar dois irmãos gêmeos,
nascidos meninos. Ao passar por uma cirurgia de circuncisão, um dos garotos,
que ainda era bebê, teve o pênis completamente removido. Procurado pelos pais
da criança, Money decidiu que o melhor seria realizar uma cirurgia de mudança
de sexo na criança e criá-la como uma menina, na certeza de que gênero é algo
que pode ser “ensinado”.
Durante
dez anos o psicólogo acompanhou a evolução da criança, e fundamentou suas
teorias com base no “sucesso” do caso, afinal ela se vestia, era tratada e foi
educada como se fosse, de fato, uma menina. O problema é que alguns anos depois
o biólogo Milton Diamond resolveu investigar a vida dessa criança que havia
passado pelo experimento.
Aos 14 anos,
enfrentando questões sérias quanto à própria identidade, a “menina” passou pela
primeira cirurgia para voltar a ser homem, gênero com o qual sempre se
identificou. O homem que passou pelo experimento polêmico de Money agora se
chamava David Raimer, e em 2004 acabou se matando com um tiro na cabeça.
Se a intenção de
Money era provar que identidade de gênero é algo que pode ser “ensinado”, o
efeito real acabou sendo o oposto do desejado. A contribuição maior do
psicólogo parece ter sido, então, no sentido de que identidade de gênero
existe, sim, e é extremamente normal que algumas pessoas não se identifiquem
com suas características biológicas de gênero. Induzir alguém a se identificar
com determinado gênero, no entanto, está longe de ser o ideal.
O caso polêmico
de Money deu abertura para que inúmeras pessoas, que passaram por cirurgias de
correção intersexual durante a infância, relatassem seus traumas com relação ao
procedimento cirúrgico e às consequências dessa transformação em suas vidas.
Esses pacientes relatam problemas de ordem psicológica, vergonha, dor física,
cicatrizes e dificuldades em suas vidas sexuais.
De volta ao caso
de M.C.
Quando nasceu,
M.C. foi registrado pela equipe médica responsável pelo parto como menino. Em
seus prontuários médicos, a condição de M.C. é descrita como “confusa”, e um
teste de DNA, realizado algum tempo depois, revelou que ele tinha os dois
cromossomos X, que definem o gênero feminino e, a partir daí, M.C. foi
considerado menina. Deveria ser educado dessa maneira, então?
A
criança foi abandonada pelo pai biológico quando tinha apenas três meses de
idade e, logo em seguida, a mãe biológica perdeu a guarda do filho, que foi
encaminhado para adoção. Em 2006, o caso de M.C. foi avaliado por dois médicos
especialistas: o primeiro um cirurgião especialista em urologia pediátrica e o
segundo, um endocrinologista que ficou focado em resolver questões hormonais.
Nos
prontuários dos dois médicos fica claro que, com base em questões hormonais,
M.C. era menino. Ainda assim, a equipe acabou decidindo que a criança deveria
passar por um processo de cirurgia que o “transformasse” em menina.
Quando tinha um
ano e meio, M.C. foi submetido a um procedimento que removeu seu pênis e o
reduziu ao tamanho de um clitóris. O tecido do testículo foi retirado e o que
restou de seu saco escrotal serviu como base para a formação do canal vaginal.
Casos
como os de M.C. têm ganhado espaços em tribunais de todo o mundo. A antropóloga
médica Katrina Karkazis, de Stanford, acredita que está na hora de levarmos a
sério os depoimentos desses pacientes que se dizem infelizes devido à
realização precoce da cirurgia, ainda que eles sejam uma minoria. “Essa é uma
questão da nossa geração de médicos, não da geração de Money”, afirma.
É
verdade que as técnicas de cirurgia melhoraram nas últimas décadas, assim como
o apoio psicológico às crianças que passam pelo procedimento também melhorou. O
que preocupa é o aumento no número de cirurgias reparatórias realizadas em
crianças.
“A verdade é que
nos Estados Unidos a maioria das crianças intersexuais está passando pela
cirurgia. E é uma cirurgia relativamente agressiva”, afirmou o urologista
pediátrico Michael DiSandro, de São Francisco. O especialista afirma que muitos
hospitais deixam a decisão a respeito do gênero que vai prevalecer ser tomada
por apenas um ou dois médicos, quando o ideal é que uma equipe avalie o caso com
muito critério.
O
professor de pediatria e genética humana Eric Vilain é um dos profissionais que
buscam explorar mais as questões de gênero dentro da medicina. Ele admite que
esse aspecto ainda é minimamente conhecido dentro da comunidade médica. Com seu
grupo de pesquisadores, Vilain tenta encontrar uma maneira de identificar o
gênero de uma pessoa por exames biológicos, com a intenção de tornar esse um
protocolo na questão das cirurgias realizadas em bebês intersexuais. Para Pam
Crawford, mãe de M.C., ninguém deveria ter o direito de realizar esses
procedimentos.
Por
outro lado, os especialistas nesses tipos de cirurgias acreditam que deixar de
realizar os procedimentos em bebês seria ainda pior. “Aqueles que defendem que
as cirurgias deixem de acontecer não têm qualquer evidência de que os
resultados disso seriam melhores do que o que estamos fazendo agora”, defende o
urologista pediátrico Barry Kogan. “Nós certamente podemos ser criticados pelos
erros cometidos no passado, mas acho que isso pode facilmente resultar em
tantos traumas psicológicos e em tantos erros se seguirmos para o outro
extremo”, complementa.
DiSandro acredita
que realizar a cirurgia enquanto os pacientes são bebês evita sofrimentos
futuros. “Forçar crianças a conviverem com as duas genitálias é realmente
difícil – isso é quase antiético”, diz ele.
Por outro lado, o
número de estudos que avaliam os efeitos psicológicos em crianças que não
passaram pelo procedimento é muito pequeno. Além do mais, os resultados não
chegam a conclusões muito claras. Alguns dizem que não há
diferenças específicas
com relação à qualidade de vida dessas pessoas, mas outros apontam
diferenças em questões
de educação, empregabilidade e casamento.
Hida Viloria, que
cresceu sem realizar o procedimento cirúrgico, diz que é possível que uma
pessoa cresça sendo intersexual e que seja perfeitamente feliz com isso: “Não é
tão difícil ser intersexual como todo mundo acha que é – pelo menos é nisso que
acredito”, resume.
Mesmo na
adolescência, Hida, que se identifica como mulher, teve uma vida normal, ainda
que sua aparência fosse considerada masculinizada. Ela era líder de torcida e
namorava meninos. Com o passar do tempo, percebeu que se sentia atraída por
mulheres e atualmente é casada com uma mulher, com quem tem um filho de oito
anos.
Enquanto isso,
Pam aguarda pela decisão judicial a respeito de M.C. O caso tem ganhado cada
vez mais repercussão, o que é positivo por trazer à tona a discussão sobre o
assunto.
Atualmente,
M.C. vive como um garoto, embora ainda sinta medo de ser repreendido de alguma
maneira ao utilizar banheiros masculinos, por exemplo. A preocupação dos pais
do garoto é com relação à puberdade, que pode trazer mudanças anatômicas como o
crescimento de seios e a menstruação. De qualquer forma, quando isso acontecer,
a família afirma que vai procurar ajuda médica para realizar terapias
hormonais.
É
verdade que M.C possivelmente precisaria realizar terapias hormonais e
procedimentos cirúrgicos. O que a família questiona é o fato de que o garoto
simplesmente não teve a opção de decidir a respeito do próprio corpo e que, no
final das contas, a decisão feita pela equipe médica não é a mesma que ele
teria, se pudesse escolher hoje.
“Nós
simplesmente odiamos o fato de que as escolhas que foram feitas poderiam ter um
impacto significativo em sua vida como homem. Nós apenas não queremos que as
pessoas precisem passar pelo que ele está passando”, resume a mãe.
Ainda
que a realidade da condição intersexual não faça parte da vida da maioria das
pessoas, é interessante observarmos esses casos para tentarmos entender melhor
as questões de identidade de gênero e respeitar qualquer condição relacionada
ao tema, que é alvo de tanto preconceito e motivo de tantos crimes de ódio.
Fonte: Mega
Curioso
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